UM MUNDO PRÓPRIO QUE (QUASE) SÓ ELES ENTENDEM
Uma viagem ao universo complexo das crianças autistas. Em todo o mundo, cinco em cada dez mil sofrem deste problema. Em Portugal, uma nova aplicação ajuda a desenvolver competências
Guiados pelo neuropediatra Nuno Lobo Antunes e por Teresa Brandão, consultora científica no centro CADIN, procuramos conhecer melhor o autismo na infância. Entre connosco no mundo das crianças autistas e compreenda-as melhor. Estima-se que, em todo o mundo, cerca de cinco em cada dez mil crianças sofre de autismo, patologia que se traduz no défice cognitivo e perturbações comportamentais, de sociabilização e linguagem, com reflexo no seu comportamento. Especialistas afirmam que resulta de uma perturbação do desenvolvimento do sistema nervoso que afeta o funcionamento cerebral a vários níveis e que ocorre ainda antes do nascimento.
A diversidade de diagnóstico, tanto pelas áreas afetadas como pela gravidade, justificam a designação de perturbações do espectro do autismo. A sua origem é complexa. Parte da responsabilidade recai sobre os genes, mas o autismo pode estar igualmente associado a rubéola materna, doenças metabólicas ou a síndrome do X frágil, este último talvez uma das explicações para que quatro em cada cinco casos sejam do sexo masculino. Ter já um filho com autismo aumenta a probabilidade, como refere Nuno Lobo Antunes, «cerca de três por cento, uma incidência semelhante à que se verifica nos gémeos falsos».
«Pelo contrário, nos gémeos verdadeiros a probabilidade de ambos serem autistas pode atingir os noventa por cento. É uma realidade complexa que não implica um gene mas um conjunto de genes», explica. Definitivamente abandonada está a ideia de que o autismo resulta da falta de carinho materno. Apesar de afetar o comportamento, a sua origem não está nas emoções, como exemplifica o especialista, «não há nenhuma ligação definida entre aspectos emocionais na gravidez e o aparecimento do autismo. É o resultado de uma disfunção cerebral. Nasce-se autista».
Na maioria das vezes é apenas aos dois, três anos, que o autismo é detectado, pois «envolve dificuldades de sociabilização e comunicação e, antes de ter sido atingido um ano de idade, esses aspectos ainda não estão suficientemente desenvolvidos», afirma o neuropediatra Nuno Lobo Antunes. Em alguns casos mais raros, a criança pode evoluir normalmente nos primeiros anos, contudo, por norma, este período de desenvolvimento não excede o terceiro ano de vida.
Nos primeiros meses, as alterações podem ser muito subtis, como a falta de contato ocular com a mãe ao mamar, uma postura demasiado rígida ao colo ou pouca recetividade ao contacto físico. Numa fase posterior, destaca-se a expressão facial ou comportamento fora de contexto, e o pouco interesse por aquilo que a rodeia. Por exemplo, a criança não aponta, não olha para onde a mãe está a olhar, não chora ou não se defende quando lhe tiram um boneco da mão. Isolamento, dificuldade em interagir com as pessoas, interesses restritos e ações repetitivas são outros indícios que devem colocar os pais em estado de alerta.
Um dos principais sinais de alarme surge com a aquisição da linguagem que, nestas crianças, pode ocorrer onze meses mais tarde, sendo que cerca de nove por cento nunca chega realmente a falar. Muitas vezes, a linguagem pode limitar-se à vocalização, ao uso repetitivo ou inadequado de expressões, vocabulário limitado e até à criação de um idioma próprio. Noutros casos verifica-se uma regressão. A criança, que dizia algumas palavras, deixa de o fazer.
A ausência de comportamentos de imitação (peça-chave no desenvolvimento infantil) torna a aprendizagem mais difícil. Um dos trunfos a usar é a memória visual, mais apurada do que a auditiva. Ao ilustrar as palavras com imagens ou desenhos a criança obtém pistas visuais que a ajudam a concentrar-se e a reter a informação. Perguntas como «o que é isto?» são de evitar pois funcionam como fonte de ansiedade.
Brincar ao faz de conta ou fazer jogos de grupo típicos da infância não despertam interesse nestas crianças. Por vezes, a fraca resposta a estímulos externos leva os pais a pensar que se trata de surdez. Algumas parecem imunes à voz mas têm sensibilidade extrema a sons comuns como o do telefone, outras possuem um limiar à dor elevado. A perceção sensorial varia, caso a caso. Com uma capacidade cognitiva, em regra, reduzida (calcula-se que em cerca de setenta e cinco por cento das situações) existem, no entanto, casos em que as crianças autistas têm aptidões fora do comum, como, por exemplo, uma memória acima da média.
O autismo caracteriza-se por comportamentos desajustados, repetitivos e pela tendência em seguir rotinas rígidas, o que leva as crianças a sentirem-se perturbadas quando há alterações ao seu ambiente, como uma simples mudança de lugar à mesa. Organizar um horário em que a sequência de atividades diárias da criança (por exemplo, o ato de levantar-se, tomar banho e vestir-se) esteja representada através de figuras ajuda a estruturar a sua rotina e a saber que comportamento é esperado em cada situação.
Uma intervenção precoce só é possível se houver um diagnóstico precoce. Fazer o acompanhamento médico da criança e alertar o pediatra caso exista uma perturbação de comportamento, comunicação ou sociabilização permitem identificar o problema e encaminhá-la para uma consulta especializada. Visto muitas das alterações comportamentais serem pouco visíveis em termos biológicos ou na estrutura cerebral, o diagnóstico é essencialmente clínico, baseado na observação e avaliação de comportamentos.
Uma vez identificadas as áreas em que a criança apresenta dificuldades, é elaborado um plano de intervenção específico, com base em terapias comportamentais. Embora existam fármacos para combater alguns sintomas associados a esta patologia, como a ansiedade ou a falta de concentração. «Não existem medicamentos, nem vitaminas, que curem o autismo ou que melhorem a capacidade de sociabilização e empatia. Portanto, são utilizadas técnicas comportamentais para tentar minorar e melhorar o comportamento das crianças com perturbações do espetro autista», afirma Nuno Lobo Antunes.
A especificidade de cada caso obriga a um plano de ação individual e, com as técnicas adequadas, é possível desenvolver capacidades, nomeadamente em termos de comportamento, linguagem, interação social. Embora se estime que apenas cerca de um terço dos casos de autismo atinja um certo grau de independência, verificam-se progressos na fase escolar, sobretudo no que se refere ao funcionamento social. Frequentar uma escola comum revela-se importante, pois permite o contato com outras crianças e a integração social.
A par da ajuda especializada, os pais desempenham um papel determinante, tanto pela forma como encaram a disfunção como pelas estratégias que usam para lidar com ela. Convém lembrar que, apesar de não estar na origem do problema, o meio envolvente pode ajudar a que progrida. Fomentar o contato regular com outras crianças, estimular a aprendizagem através do jogo, música ou objeto favorito, criar situações em que a criança tem de tomar iniciativa e, sobretudo, estar atento às suas reações, gostos e necessidades são gestos importantes. Tudo para que o seu filho se sinta parte do seu mundo. Que é também o dele!
Existem vários comportamentos que podem auxiliar o seu filho:
1- Atençaõ e Concentração
- Utilizar estímulos visuais, nomeadamente objetos, fotos e desenhos.
- Minimizar as distrações.
- Selecionar os estímulos como a cor favorita.
- Na escola, é aconselhável que a criança se sente junto da educadora, para que haja menor dispersão.
2- Interação Social
- Motivar brincadeiras com crianças de idades similares (grupos de duas, três).
- Usar objecos de grande dimensão (como bolas) que incentivam o jogo social.
- Promover a interação adulto-criança, com alternância de papéis.
- Dar-lhe oportunidade e tempo para reagir ou responder.
- Seguir as pistas ou iniciativas da criança, sempre que apropriado.
3- Comunicação e Linguagem
- Comunicar combinando fotos, objetos e palavras.
- Exagerar no tom de voz e expressões faciais.
- Ser persistente e sistemático.
- Usar frases curtas, simples e palavras conhecidas.
- Responder às intenções de comunicação mostradas pela criança.
- Colocar objetos à vista, mas fora de alcance, para que tenha de pedir.
- Apostar imitação de cantigas com gestos e lengalengas.
A aplicação portuguesa que também pode ajudar
O projeto português Enforcing Kids, dedicado ao autismo, desenvolveu, em meados de 2014, uma aplicação para crianças com distúrbios de autismo acompanhadas por adultos e/ou terapeutas. «Regra geral, para muitas dessas crianças, as sessões de terapia não são regulares e existem períodos de interrupção, podendo ocorrer retrocessos como consequência desta irregularidade, o que faz com que os tratamentos não sejam tão eficazes. Torna-se assim importante que a terapia se estenda à casa e que os pais possam ter ao seu alcance ferramentas que os ajudem e que possam ser utilizadas na próxima sessão de terapia para uma avaliação do progresso da criança», justificam os responsáveis pela iniciativa.
A app Enforcing Kids aproveita as potencialidades dos tablets e resolve os problemas de interrupção das terapias. «Os jogos, que podem ser configurados pelos terapeutas e pais, seguem a lógica das sequências e, portanto, exploram as dificuldades que estas crianças têm ao formulá-las. Assim se desenvolvem áreas, como a matemática, a música, as ciências ou as pequenas rotinas do dia a dia. A ideia é alargar o mundo real ao mundo virtual do jogo, onde a criança pode ver, para cada passo da sequência, um conteúdo multimédia (imagem ou vídeo) que o ilustra», acrescentam os especialistas.
Texto: Manuela Vasconcelos com Nuno Lobo Antunes (neuropediatra) e Teresa Brandão (consultora científica no centro CADIN)