O tipo e a qualidade de apoio que uma sociedade dá às pessoas com deficiência é um espelho directo do grau de civilização e humanismo dessa sociedade.
“Reparei que pões perfume à tua filha.” A pergunta caiu assim, de
repente, e a mãe da Vera ficou surpresa. “Porque não?”, retorquiu. “Não pões à
tua?” As duas crianças, de dois anos de idade, estavam frente a frente, nos
respectivos carrinhos de passeio, a Francisca agitando-se, rindo, fazendo
caretas para a Vera. Esta, com paralisia cerebral, emitia sons e tentava
libertar-se da cinta que a mantinha na posição de sentada.
“Sim, ponho, isso é um facto... mas a Francisca é normal, quer
dizer, a Vera, como é assim, não deve dar muito por isso… foi por isso que
achei original.”
A mãe da Vera disse, com um tom calmo:
“Sabes que a Vera, por ser ‘assim’, como tu dizes, tem algumas funções muito
desenvolvidas, como é o caso do olfacto. E pondo-lhe um perfume bom estará
também protegida quando encontra pessoas rançosas e mentalmente malcheirosas.
Percebes a ideia...”
E enquanto a conversa terminava logo ali, a Francisca despedia-se
da Vera acenando-lhe um adeus e a Vera tentava sorrir, mesmo que com muita
dificuldade.
Foi decidido! Hoje ninguém anda de
óculos. É, leitor, quer ler o i, procurar um livro na sua livraria preferida ou
até escolher um CD para ouvir em casa? Paciência. Queria ir ao banco e acabou
no sapateiro… azar! E… cuidado com essas escadas. Ui! Deve ter doído, esse
trambolhão. Não sabe onde está o seu carro? Nem sabe ler as matrículas? Ah! Já
nem reconhece os seus filhos entre as várias crianças que estão na escola. Pois
é… tudo isto porque hoje não o deixaram usar os seus óculos, você, um
deficiente que sem a sua prótese ocular se transforma numa pessoa com handicap.
Agora imagine que este sonho (pesadelo, leia-se) é real para
muitos e que estes ainda são desconsiderados pelos outros, que se julgam
superiores na escala humana?
Ainda não nos convencemos de que o caminho não é “integrar”, ou
seja, dar umas benesses aos “pobres desgraçados”, mas construir uma
sociedade e um meio ambiente onde todos possam estar. Todos temos deficiências,
só que algumas são aceites e outras não. O que é injusto. O que não é decente.
O que fere os valores fundamentais da humanidade!
Mesmo com enormes melhorias e avanços, há ainda que lutar para que
as pessoas portadoras de deficiência, seja qual for o seu grau de handicap,
vivam plenamente a cidadania. A variedade do tecido social é a sua maior
“mais-valia”. Aliada a esta concepção do mundo está a questão da qualidade de
vida e de como este conceito, associado aos conceitos de felicidade, auto-estima,
respeito por si e pelos outros e participação, constitui os objectivos
individuais e sociais, ao nível dos diversos ecossistemas, numa perspectiva
solidária e complementar da sociedade. Uma sociedade onde todos possam, se
quiserem, “usar perfume”, pesem ainda as muitas barreiras, obstáculos e
dificuldades que se colocam no quotidiano da pessoa com deficiência e da sua
família.
A sociedade é composta por diversas matizes e cada um de nós,
mesmo vendo-nos a nós próprios como “sem deficiência”, temos também uma série
de “fraquezas” e mesmo handicaps, os quais muitas vezes nos causam até maior
impacte social e relacional do que as consideradas deficiências “tradicionais”
– veja-se a timidez, por exemplo. A complementaridade do tecido social e a
participação de todos na vida comum é a única maneira de potenciar toda a
riqueza da espécie humana.
É por isso que a mãe da Vera lhe põe perfume, tal como a mãe da
Francisca… todavia, na atitude preconceituosa da mãe da segunda é que reside a
diferença conceptual e civilizacional.
Pediatra
Fonte: http://ionline.pt/