"O TEMPO em que os animais falavam, os bichos constataram que o meio
em que viviam começava a tornar-se cada vez mais complexo e havia que impor
novas hierarquias, estabelecer novos parâmetros de comportamento, uma vez que
já não chegavam os seus instintos inatos para enfrentar as modificações do
meio. Esta necessidade deu lugar à ideia de ESCOLA: uma estrutura
social, que os habilitaria, A TODOS, para enfrentar as crescentes modificações
a que assistiam.
Foram escolhidos os melhores animais para a docência, isto é, os reconhecidos
como mais experientes, alta profissionalização nos seus domínios específicos,
grandes títulos em competições. O reconhecimento destas qualificações
envaideceu-os, naturalmente, e a maioria esqueceu, desde logo, a razão por que estava
ali. Com muitas reuniões gerais de professores, muitas reuniões de grupo,
reuniões de conselho pedagógico, de departamento, de secções, reuniões de
conselho executivo, etc… escolheram o seguinte currículo: Nadar,
Correr, Voar, Galgar montes e Saltar obstáculos.
Os primeiros alunos foram o Cisne, o Pato, o Coelho e o Gato. Começadas as
aulas, cada professor, altamente preocupado com a sua disciplina, preparava
primorosamente a matéria, dava sem perder tempo, procurando cumprir o programa
e a planificação do mesmo. Faziam, assim jus aos seus títulos e competências.
Mas os alunos iam-se desencantando com a tão sonhada escola. Vejam o caso
particular de cada aluno:
O Cisne, nas aulas de correr, voar e galgar montes era um péssimo
aluno. E mesmo quando se esforçava, ao ponto de ficar com as patas
ensanguentadas das corridas e calos nas asas, adquiridos na ânsia de voar,
tinha notas más. O pior era que, com o esforço e desgaste psicológico
despendido nessas disciplinas, estava a enfraquecer na natação, em que era o
máximo.
O Coelho, por sua vez padecia nas matérias de nadar e voar. Como poderia
voar se não tinha asas? Em se tratando de nadar, a coisa também não era fácil
não tinha nascido para aquilo. Em contrapartida, ninguém melhor do que ele,
corria e galgava montes.
O Gato tinha problemas idênticos aos do coelho, nas disciplinas de
natação e voo. Ele bem insistia com o professor que, se o deixasse voar de
cima para baixo, ainda poderia ter êxito. Só que o professor dizia que
não podia aceitar essa ideia louca porque não estava contemplado no programa
aprovado e o critério de selecção era igual para todos.
O Pato, finalmente, voava um pouquinho, corria mais ou menos, nadava bem
mas muito pior do que o cisne, e desastradamente, embora com algum desembaraço,
até conseguia subir montes e saltar obstáculos. Não tinha reprovações a nenhuma
disciplina, como os seus restantes colegas o que o fazia sumamente brilhante
nas pautas finais.
Os professores consideraram-no o aluno mais equilibrado, deram-lhe a possibilidade
de prosseguir estudos e, com tantos “atributos”, até fomentaram nele a
esperança de um dia, poder vir a ser professor.
Os restantes alunos estavam inconformados. Nada tinham contra o pato, gostavam
dele, compreendiam o seu grau mínimo de suficiência a todas as disciplinas,
mas, perguntavam-se: a espantosa capacidade do Coelho em saltar obstáculos,
correr e galgar montes não poderia ser aproveitada para enfrentar as tais novas
situações sociais, que os levaram a ter a ideia de ESCOLA? E o Gato? De nada
lhe serviria correr e saltar melhor do que o Pato? E que utilidade teria, para
o Cisne, nadar como nenhum outro? Cada um tinha, de facto, a sua queixa
justificada. A escola, pensavam eles, era o local onde aperfeiçoariam as
capacidades que tinham, de modo a pô-las ao serviço da sociedade. Se as coisas
já estavam difíceis, que fazer agora com a tremenda frustração de não servirem
para nada?
Foram falar com os professores. As limitações de cada um eram um facto, eles
sabiam que jamais seriam polivalentes, de modo a terem grandes escolhas.
Contudo, se reprovassem no ano seguinte estariam exactamente na mesma
situação.
Os professores lamentaram muito. Havia um programa, superiormente
estabelecido e a questão era só esta: ninguém tinha média igual à do Pato e,
por isso, na sua mediocridade, ele era, estatisticamente superior a todos.Os
outros alunos abandonaram a escola . Desde então por razões óbvias a escola
atrai mais os patos e, na sociedade, são eles que dominam."
in Noesis , nº20, Setembro de 1991
Transcrição da revista de Manuela Silveira.
(com o agradecimento a APS)