Em causa está o modelo de pagamento do subsídio de Educação Especial, que passou a ser pago aos pais.
Marta Santos é
terapeuta da fala. Dá apoio a crianças na escola de um bairro carenciado de
Porto Salvo, em Oeiras. Ajuda crianças com dificuldades em soletrar
determinados sons, crianças com gaguez e com problemas de expressão. Mas três
crianças que acompanhou até agora não vão receber apoio no próximo ano lectivo,
porque os pais não lhe chegaram a fazer o pagamento de vários meses de
trabalho. “Faz-me muita pena e é revoltante”, desabafa, lamentando as
consequências para os jovens das atitudes “menos honestas” dos pais. “Uma
destas crianças até se abraçou a mim a chorar quando soube que não ia
acompanhá-la mais, fez-me um desenho em que dizia que eu era a melhor amiga
dela”, relata.
Marta Santos
acredita que o facto de estas famílias receberem uma quantia elevada
(respeitante aos retroactivos) leva a um certo “deslumbramento” e por isso
acabam por gastar o dinheiro num ápice em benefício próprio e não das crianças.
Maria Dias, psicóloga da mesma equipa de Marta, também não teve uma boa
experiência este ano. Deu apoio psicológico a uma criança, mas não chegou a
receber pelos seis meses de trabalho.
Famílias
problemáticas A psicóloga confessa que tinha esperança que lhe pagassem, mas
isso nunca chegou a acontecer, apesar da sua insistência. Numa das sessões, a
criança de nove anos mostrou à psicóloga o seu telemóvel novo e revelou ainda
que este ano, pela primeira vez, a família ia passar férias ao Algarve. Marta
conta também que um outro aluno que tem o mesmo tipo de apoio na escola recebeu
um tablet.
“São famílias
problemáticas, que têm grandes défices cognitivos, que não têm base de gestão e
estrutura e que transportam esses problemas para as crianças”, explica-nos a
terapeuta, temendo o impacto negativo da ausência deste apoio no
desenvolvimento cognitivo e emocional dos alunos. “Vai interferir bastante na
aprendizagem. Na terapia da fala lido com alunos que não conseguem interpretar
uma ordem e que não conseguem acompanhar uma conversa”, refere.
A terapeuta
explica-nos ainda que, para os alunos que têm problemas como dislexia e graves
dificuldades de interpretação, acompanhar uma aula é uma tarefa muito complexa
e que o apoio que dá é de extrema importância. “Têm dificuldades em interpretar
o que lhes é dito, o que é notório depois na escrita. São jovens com problemas
em casa, onde não têm uma atenção especial (os pais deixam de ir às reuniões na
escola) e que acabam por desenvolver problemas de personalidade”,
conclui.
Nuno Consciência,
coordenador da equipa onde Marta e Maria trabalham, refere que cerca de um
quarto das famílias não faz o pagamento aos técnicos e aponta duas razões
possíveis para isso. Por um lado, há quem se queira aproveitar do sistema e
fique com o subsídio. Por outro lado, há casos de famílias que já têm dívidas
(dívidas aos bancos ou à Segurança Social) e quando o subsídio lhes é
transferido é-lhes imediatamente penhorado para cobrar essas dívidas.
Segurança Social
contribui Na opinião do psicólogo, o sistema de pagamento aos encarregados de
educação foi feito precisamente para correr mal. Ou seja, “a Segurança Social
não está a acabar propriamente com o subsídio, mas está a contribuir para que
as coisas corram mal”. No seu entender, trata-se de uma forma indirecta de este
organismo poupar dinheiro, porque, em última instância, são os profissionais
que desistem de acompanhar as crianças, por estarem a prestar serviços de forma
gratuita: “Este ano já trabalhámos de borla para essas famílias. No próximo já
não vamos renovar com aqueles que este ano não pagaram as consultas”, lamenta.
Além disso, explica, a burocracia para solicitar o apoio a crianças com
necessidades especiais tem vindo a aumentar e a atrasar todo o processo,
fazendo com que os técnicos só começassem a receber em Maio (quando em anos
anteriores recebiam a partir de Dezembro), refere o coordenador.
Nuno conta ainda
que depois das queixas a Segurança Social “lavou as mãos”, recomendando que
estes profissionais fizessem queixa das famílias em causa à Comissão de
Protecção de Menores ou entrassem com acções judiciais. A consequência será a
penhora de uma percentagem dos rendimentos destas famílias (proveniente, na
maioria dos casos, dos vários subsídios que recebem – inserção, desemprego,
abonos de família). Quem vai ficar a perder são as crianças que vão deixar de
ser acompanhadas, lamenta o psicólogo.
Contactado pelo i,
o Instituto da Segurança Social (ISS) comenta que o método de pagamento não é
novo. O que acontece é que os “procedimentos foram uniformizados”, com base no
princípio de que estas prestações sociais – tal como acontece com o abono de
família – são pagas aos beneficiários, tratando-se de um direito das famílias,
que têm de ter a responsabilidade de aplicar o dinheiro na educação e na saúde
dos filhos.
Questionada sobre
casos como o de Marta e de Maria, a assessoria do IPSS remeteu a
divulgação dessa informação para os próximos dias.
Fonte: Jornal I
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