quinta-feira, 18 de junho de 2015

PHDA, mito ou realidade?

Desde há mais de duas décadas que sou responsável pelo seguimento de crianças com Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA), não podendo deixar de reagir a programas como o “Linha da frente”, da RTP1, do passado dia 6 de junho.
Sou pediatra do neurodesenvolvimento no Hospital Pediátrico de Coimbra, responsável desde 1989 por uma das primeiras consultas de hiperatividade do País. Fomos também dos primeiros a utilizar metilfenidato (MPH) de forma regular, 14 anos antes da sua comercialização em Portugal. Periodicamente, este grave problema que afeta 5-7% da população de idade escolar e 2,5-3% de adolescentes e adultos, é tratado pela comunicação social, duma forma que só posso apelidar de pouco responsável.
Relatos imprecisos, generalizações abusivas de casos particulares, demonização dos efeitos da medicação, entrevistas a profissionais, de saúde mental ou não, sem reconhecida credibilidade nesta patologia e frequentemente veiculando informações incorretas, fazem parte da estratégia utilizada.
Utiliza-se a opinião de médicos não peritos, que veiculam a opinião de que a PHDA não existe, é uma fraude ou um problema benigno e colocam-se em contraste com os resultados da mais avançada investigação científica, como se ambas as opiniões tivessem igual mérito. Passa-se para a opinião pública a ideia, de que entre profissionais igualmente experientes na área, há duas correntes, ambas de igual validade científica.
Tenta-se fazer crer que a PHDA é um problema social, onde crianças “normais”, sem qualquer problema para além de serem um pouco irrequietas, são rotuladas de “hiperativas” e consideradas “doentes” apenas com o propósito de as medicar. Desta forma, lança-se a desinformação, levando em última análise a uma ausência de procura de ajuda e tratamento adequados por quem necessita, ou à confusão de quem já é acompanhado em consultas.
A PHDA está claramente entre os problemas de saúde em geral e do neurodesenvolvimento em particular, mais investigados. Milhares de profissionais em todo o mundo, das áreas da psicologia, psiquiatria, neurologia, neurofisiologia, imagiologia, genética e outras, dedicam as suas carreiras e a sua investigação a este problema.
Há hoje um consenso mundial, entre as diferentes sociedades científicas, como as academias europeias e americanas de pediatria, pedopsiquiatria, psiquiatria, a federação mundial de PHDA ou a rede europeia de estudo da PHDA Eunethydis, relativamente às orientações diagnósticas e terapêuticas desta perturbação.
Contrariamente ao que se pretende fazer crer, a PHDA não é um distúrbio benigno e pode causar problemas devastadores ao longo da vida. É uma das perturbações neurocomportamentais mais frequentes na criança e adolescente. É um problema crónico que em grande percentagem persiste na vida adulta.
É uma condição neurobiológica, com marcada etiologia genética, envolvendo disfunção de várias regiões específicas do cérebro, concretamente o córtex pré-frontal e suas conexões com os núcleos da base e cerebelo. Apesar da importância de fatores ambientais, nomeadamente o ambiente sociofamiliar, no agravamento ou proteção relativamente às queixas de PHDA, raramente são a causa primária do seu surgimento.
A investigação deixa claro que a disfunção cerebral da PHDA envolve importantes áreas neurocognitivas (função executiva, memórias de trabalho, linguagem, atenção e controle motor), prejudicando o funcionamento académico, familiar, ocupacional e social.
A PHDA raramente cursa isolada, associando-se frequentemente a comorbilidades (dificuldades específicas de aprendizagem, perturbação de oposição, da conduta, da linguagem, do humor, de ansiedade, etc.), com relevância em termos de orientação diagnóstica e terapêutica.
Múltiplos estudos de seguimento mostram que em indivíduos com PHDA há taxas muito superiores de retenção e abandono escolar. Como adultos, apresentam taxas de produtividade muito inferiores e mais problemas no emprego e na família. Participam mais em atividades antissociais, consomem mais drogas ilícitas, são mais propensos a gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis, múltiplos acidentes de viação, depressão, transtornos de personalidade e criminalidade.
Uma abordagem não farmacológica isolada, está recomendada para a PHDA em crianças pré-escolares ou nas situações mais ligeiras. Em situações moderadas ou graves, com grande impacto no funcionamento, desempenho e autoestima da criança, após uma adequada avaliação por equipa interdisciplinar, é recomendada a medicação em associação com medidas não farmacológicas. Apesar de esta ser a regra geral, a decisão deve ser sempre tomada caso a caso. O inicio de medicação é sempre decidido pelos pais, depois de devidamente informados e a sua continuidade dependerá dos ganhos obtidos e dos eventuais efeitos secundários.
O metilfenidato (MPH) é o fármaco de 1ª linha no tratamento da PHDA, de acordo com todas as “guidelines” internacionais, com efeitos positivos muito claros na redução da hiperatividade e impulsividade, no aumento das capacidades atencionais e cognitivas. De acordo com a nossa já longa experiência, o MPH veio melhorar significativamente a qualidade de vida de muitos milhares de crianças e adolescentes com PHDA e respectivas famílias, nos últimos 26 anos.
Com mais de meio século de utilização regular em todo o mundo, o MPH é o psicoestimulante mais estudado e mais utilizado na criança, com um nível de eficácia próximo dos 80% e padrões de segurança ímpares no contexto dos psicofármacos. Atualmente está disponível em Portugal um segundo fármaco, não estimulante, a atomoxetina. O seu uso tem sido muito limitado pelo fato de só recentemente ter obtido comparticipação. Tem indicações clinicas precisas, como fármaco de 2ª linha, concretamente no insucesso ou contraindicações ao MPH.
Várias razões, algumas bem óbvias, estão subjacentes a um aumento enorme do uso de MPH nos últimos 10 anos e a um previsível crescimento do uso deste fármaco nos próximos anos:
  1. A PHDA é uma patologia altamente prevalente e a sensibilidade para o problema, por parte de pais, professores, médicos de família, pediatras, pedopsiquiatras, neuropediatras e da sociedade em geral, tem aumentado significativamente.
  2. O nível da exigência e competitividade do ensino é hoje consideravelmente superior ao de há alguns anos (em contraste com uma redução dos apoios educativos).
  3. O MPH tem grande eficácia, com excelente tolerância e só está disponível em Portugal desde há menos de 12 anos (final de 2003).
  4. O número de consultas especializadas em Portugal, aumentou exponencialmente na última década, provavelmente mais do que a prescrição de MPH. Inicialmente apenas os serviços de neuropediatria ou pediatria dos grandes centros, importavam o MPH diretamente. Com a introdução do fármaco no mercado e a adesão dos serviços de pedopsiquiatria, inicialmente renitentes à terapêutica com psicoestimulantes, pela criação de consultas de neurodesenvolvimento em todos os serviços de pediatria, com a disseminação de centros de desenvolvimento privados por todo o País, “democratizou-se” e generalizou-se a nível nacional, o acesso de crianças com PHDA a serviços especializados.
  5. O aumento previsível nos próximos anos do uso por crianças e jovens do sexo feminino. Tradicionalmente a ênfase e a justificação para o uso do MPH, residia nos comportamentos disruptivos e nos seus efeitos no funcionamento da sala de aulas. Cada vez mais se conclui que o défice de atenção é o problema com mais impacto na progressão escolar e as raparigas, por serem essencialmente desatentas, têm sido alvo de subdiagnóstico, situação que está gradualmente a ser corrigida.
  6. Só recentemente o MPH foi aprovado para uso nos adultos e só agora começam a surgir nalguns serviços de psiquiatria, consultas de hiperatividade para adultos, ainda de forma muito residual, sendo espectável um aumento de prescrição nesta faixa etária.
Desta forma, o aumento significativo verificado na utilização de MPH na população portuguesa está na sua maioria justificado. Pelas razões expostas e pela transposição para o nosso País dos dados de prevalência internacionalmente aceites, uma grande percentagem de crianças e jovens com PHDA continuam sem encaminhamento para os serviços adequados. Sendo assim, será previsível uma continuação do crescimento da prescrição de fármacos para a PHDA. A monitorização cuidada da utilização de psicofármacos em geral e psicoestimulantes em particular é de grande importância e deve ter como alvo principal o comércio pela internet. Às consultas especializadas nesta patologia, particularmente no âmbito das consultas de neurodesenvolvimento dos serviços de pediatria, devem ser garantidas as condições técnicas necessárias. Equipas interdisciplinares incluindo médico, psicólogo, técnico superior de educação e assistente social, assegurando um diagnóstico e uma avaliação adequadas, podem dar um importante contributo para a redução ao mínimo da margem de erros e de eventuais excessos.
José Boavida Fernandes
Pediatra do Neurodesenvolvimento
Responsável da Consulta de Hiperatividade do Centro de Desenvolvimento do Hospital Pediátrico, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
In http://ipodine.pt/

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