quarta-feira, 15 de julho de 2015

Saiba porque existem crianças sobredotadas que, ao mesmo tempo, têm áreas com baixo desenvolvimento

Algumas crianças revelam níveis heterogéneos de desenvolvimento. A sua evolução cognitiva, verbal e lógica processa-se de forma diferente, por exemplo, da evolução psicomotora. Por vezes, reúnem conhecimentos inesperados para a sua idade em domínios como matemática, astronomia, física, história, ou outros, mas revelam dificuldades de orientação no espaço e no tempo ou de controlo e destreza motora fina.

Helena Serra
As dificuldades acima referidas vão refletir-se nas tarefas que exijam habilidades manuais ou impliquem alguma precisão. Usualmente, tais dificuldades espelham-se nos seus traçados grafomotores, apresentando uma escrita alterada, com letra mal delineada, irregular, desarmónica.
O nível psicomotor das crianças com capacidades excecionais está mais ligado à sua idade cronológica do que à sua idade mental. Os pais e os professores inquietam-se, porque a criança não aceita as tarefas que poderiam desenvolver tais competências, continuando a agravar-se o problema.

«Ser sobredotado não significa necessariamente ter mais sucesso, ser mais feliz, saudável, socialmente ajustado ou mais seguro.»

Em algumas crianças, o desnível revela-se entre as competências cognitivas e a maturidade afetiva, entre inteligência e afetividade. Esta vertente vem realçar a interferência da inteligência brilhante nas necessidades afetivas, podendo a criança adotar um dado comportamento para esconder a sua imaturidade.

Isto é, ao mesmo tempo que a inteligência lhe permite captar uma vasta quantidade de informações acerca de tudo o que a rodeia, ela tenta esconder vivências muito próprias, como a ansiedade e os medos, podendo comprometer o seu equilíbrio psicológico. Pode mesmo fazer emergir comportamentos de padrão neurótico que os adultos têm dificuldade em aceitar. Daí que, em jeito de advertência, seja importante permitir à criança expressar os seus interesses e os seus prazeres, os seus desgostos, as suas vergonhas, as suas fúrias. E importa tambémdeixá-la vencer dificuldades para que possa desejar vencer, lutar, falhar, afirmar-se. Se não puder equivocar-se, se não puder desejar, vai naufragar em aborrecimento, e o aborrecimento é uma forma de depressão na criança.

Também no domínio social, o desfasamento pode tornar-se evidente, considerando a diferença entre a rapidez do desenvolvimento mental da criança com capacidade natural superior e a celeridade média das outras crianças, as quais, por isso mesmo, seguem um percurso escolar estandardizado.

Ora, neste processo padronizado, as necessidades e características destas crianças são esquecidas e é isso que leva a criança a tornar-se cada vez mais desinteressada e distraída, pois o ambiente oferece-lhe uma escassa ou nula estimulação de interesses.

Pode evidenciar-se aqui um comportamento peculiar da criança, designado por efeito Evereste, isto é, enquanto se mantém interessada nas atividades escolares, tem tendência a concentrar-se no que é mais complexo e difícil, não dando importância, ou mesmo falhando, nas atividades mais simples.

Neste âmbito, a criança constrói a ideia de que o sistema escolar apenas lhe exige e oferece um saber mínimo, o que representa um abalo na sua curiosidade e, consequentemente, nas suas potencialidades intelectuais.

Este aspeto social de falta de sincronia também está patente no seio familiar e no grupo de pares, porque, em geral, quer os pais quer as outras crianças esperam dela uma atuação correspondente à sua idade real.

Para os pais, torna-se difícil compreender a especificidade do comportamento do seu filho e conseguir ter, ao mesmo tempo, um diálogo que corresponda ao nível intelectual da criança e a um mesmo tempo ao seu nível de evolução afetiva. Isto agudiza-se num contexto familiar mais debilitado, do ponto de vista cultural ou socioafetivo. Não compreender a criança é prejudicial, mas o facto de a criança se aperceber de que os seus pais não a conseguem compreender, é muito pior.

Na relação com os pares revela-se também o desfasamento, porque a criança tende a procurar estabelecer relações com colegas mais velhos, com quem possa manter um diálogo mais interessante sobre diversos assuntos. Todavia, contrariamente, quando se tratam de jogos desportivos – dimensão física –, a tendência é para interagir com colegas da mesma idade ou mais novos.

Importa referir que, em estudos efetuados recentemente em escolas básicas portuguesas, se comprovou o contributo positivo das interações entre as crianças com capacidades elevadas, concluindo-se que o desinteresse aumenta pelo facto de não haver outras crianças com potencialidades idênticas na mesma sala de aula.
Em suma, embora não necessariamente, em alguns casos de alunos com capacidades elevadas podem surgir problemas emocionais: sub-rendimento académico, isolamento social, depressão, entre outros, o que confere sentido à afirmação “ser sobredotado não significa necessariamente ter mais sucesso, ser mais feliz, saudável, socialmente ajustado ou mais seguro”.

Helena Serra
Investigadora em Educação Especial e professora-coordenadora jubilada da ESE de Paula Franssinetti. É doutorada em Estudos da Criança / Educação Especial pela Universidade do Minho e tem o Curso de Formação em Sobredotação pelo World Council for Gifted and Talented Children. É autora de numerosos artigos e livros na área da Educação Especial e tem dedicado a sua vida à compreensão da dislexia e da sobredotação. Foi agraciada com o Grau de Comendadora da Ordem da Instrução Pública, em 2005

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