Algumas crianças
revelam níveis heterogéneos de desenvolvimento. A sua evolução cognitiva,
verbal e lógica processa-se de forma diferente, por exemplo, da evolução
psicomotora. Por vezes, reúnem conhecimentos inesperados para a sua idade em
domínios como matemática, astronomia, física, história, ou outros, mas revelam
dificuldades de orientação no espaço e no tempo ou de controlo e destreza
motora fina.
Helena Serra
As dificuldades
acima referidas vão refletir-se nas tarefas que exijam habilidades manuais ou
impliquem alguma precisão. Usualmente, tais dificuldades espelham-se nos seus
traçados grafomotores, apresentando uma escrita alterada, com letra mal
delineada, irregular, desarmónica.
O nível psicomotor
das crianças com capacidades excecionais está mais ligado à sua idade
cronológica do que à sua idade mental. Os pais e os professores inquietam-se,
porque a criança não aceita as tarefas que poderiam desenvolver tais
competências, continuando a agravar-se o problema.
«Ser sobredotado não significa necessariamente ter mais
sucesso, ser mais feliz, saudável, socialmente ajustado ou mais seguro.»
Em algumas
crianças, o desnível revela-se entre as competências cognitivas e a maturidade
afetiva, entre inteligência e afetividade. Esta vertente vem realçar a
interferência da inteligência brilhante nas necessidades afetivas, podendo a
criança adotar um dado comportamento para esconder a sua imaturidade.
Isto é, ao mesmo
tempo que a inteligência lhe permite captar uma vasta quantidade de informações
acerca de tudo o que a rodeia, ela tenta esconder vivências muito próprias,
como a ansiedade e os medos, podendo comprometer o seu equilíbrio psicológico.
Pode mesmo fazer emergir comportamentos de padrão neurótico que os adultos têm
dificuldade em aceitar. Daí que, em jeito de advertência, seja importante permitir à criança expressar os seus interesses e os seus
prazeres, os seus desgostos, as suas vergonhas, as suas fúrias. E
importa tambémdeixá-la vencer dificuldades para que possa desejar vencer, lutar,
falhar, afirmar-se. Se não puder equivocar-se, se não puder desejar,
vai naufragar em aborrecimento, e o aborrecimento é uma forma de depressão na
criança.
Também no domínio
social, o desfasamento pode tornar-se evidente, considerando a diferença entre
a rapidez do desenvolvimento mental da criança com capacidade natural superior
e a celeridade média das outras crianças, as quais, por isso mesmo, seguem um
percurso escolar estandardizado.
Ora, neste processo
padronizado, as necessidades e características destas crianças são esquecidas e
é isso que leva a criança a tornar-se cada vez mais desinteressada e distraída,
pois o ambiente oferece-lhe uma escassa ou nula estimulação de interesses.
Pode evidenciar-se
aqui um comportamento peculiar da criança, designado por efeito Evereste, isto
é, enquanto se mantém interessada nas atividades escolares, tem tendência a
concentrar-se no que é mais complexo e difícil, não dando importância, ou mesmo
falhando, nas atividades mais simples.
Neste âmbito, a
criança constrói a ideia de que o sistema escolar apenas lhe exige e oferece um
saber mínimo, o que representa um abalo na sua curiosidade e, consequentemente,
nas suas potencialidades intelectuais.
Este aspeto social
de falta de sincronia também está patente no seio familiar e no grupo de pares,
porque, em geral, quer os pais quer as outras crianças esperam dela uma atuação
correspondente à sua idade real.
Para os pais,
torna-se difícil compreender a especificidade do comportamento do seu filho e
conseguir ter, ao mesmo tempo, um diálogo que corresponda ao nível intelectual
da criança e a um mesmo tempo ao seu nível de evolução afetiva. Isto agudiza-se
num contexto familiar mais debilitado, do ponto de vista cultural ou
socioafetivo. Não compreender a criança é prejudicial, mas o
facto de a criança se aperceber de que os seus pais não a conseguem
compreender, é muito pior.
Na relação com os
pares revela-se também o desfasamento, porque a criança tende a procurar
estabelecer relações com colegas mais velhos, com quem possa manter um diálogo
mais interessante sobre diversos assuntos. Todavia, contrariamente, quando se
tratam de jogos desportivos – dimensão física –, a tendência é para interagir
com colegas da mesma idade ou mais novos.
Importa referir
que, em estudos efetuados recentemente em escolas básicas portuguesas, se
comprovou o contributo positivo das interações entre as
crianças com capacidades elevadas, concluindo-se que o desinteresse
aumenta pelo facto de não haver outras crianças com potencialidades idênticas
na mesma sala de aula.
Em suma, embora não
necessariamente, em alguns casos de alunos com capacidades elevadas podem
surgir problemas emocionais: sub-rendimento académico, isolamento social,
depressão, entre outros, o que confere sentido à afirmação “ser sobredotado não
significa necessariamente ter mais sucesso, ser mais feliz, saudável,
socialmente ajustado ou mais seguro”.
Helena Serra
Investigadora em Educação Especial e professora-coordenadora jubilada da
ESE de Paula Franssinetti. É doutorada em Estudos da Criança / Educação
Especial pela Universidade do Minho e tem o Curso de Formação em Sobredotação
pelo World Council for Gifted and Talented Children. É autora de
numerosos artigos e livros na área da Educação Especial e tem dedicado a sua
vida à compreensão da dislexia e da sobredotação. Foi agraciada com o Grau de
Comendadora da Ordem da Instrução Pública, em 2005
Fonte: http://www.portoeditora.pt/
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